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IMPUTAÇÃO DE RESPONSABILIDADE E DELEGAÇÃO DE PODER

A delegação de competências impacta diretamente na imputação do delito aos diretores, funcionários e, sobretudo, do compliance officer, com repercussão direta à pessoa jurídica. Em corporações é natural que a delegação de poderes seja transferida conforme a hierarquia de cada cargo, como instrumento de outorga de poderes, entre a presidência ou o conselho, até os cargos de funções mais elementares na companhia. Na hipótese de um ilícito praticado por parte de um funcionário, haverá imputação penal do autor (delegado) e/ou do delegante? O delegante estará isento de responsabilidade em relação aos delitos cometidos pelos delegados? Importante que nos instrumentos de delegação estejam claras as competências, funções e responsabilidades.

A princípio, o delegante poderia avocar a isenção da responsabilidade, desde que tenha adotado premissas de delegação. São elas:

  • obrigação do delegante selecionar adequadamente o delegado (o processo de seleção deverá ser apto a escolher a pessoa que tenha conhecimento da área na qual atuará; e esta aptidão deverá ser comprovada por documentação idônea);
  • obrigação de informar ao delegado suas atribuições (o instrumento de delegação deve relacionar atribuições e competências do delegado e este deve comprovar a transmissão destas informações indispensáveis à atividade do delegado; o delegante que retém a informação ou sonega atribuições, avoca novamente a responsabilidade que tinha delegado);
  • obrigação de coordenar os delegados (a coordenação é competência de quem transfere a responsabilidade, distribui as funções e exerce liderança sobre o controle das atividades);
  • obrigação de dotar de meios econômicos, materiais e pessoais para o delegado exercer suas funções (deixar o delegado à míngua, sem ferramentas operacionais e intelectuais para exercer sua atividade, é atitude similar à revogação da transferência);
  • obrigação de vigilância e controle (monitoramento); é obrigação do delegante vigiar os delegados, contudo, em grandes corporações, por exemplo, o delegante não possui disponibilidade de tempo para tal atividade; o Compliance é uma das formas de vigilância que pode ser exercida por delegação compliance officer; é possível acusar o administrador por omissão do dever de fiscalizar/vigiar (cegueira deliberada); e acusar por ação o subordinado/delegado que executou ativamente o delito; é obrigação do delegante vigiar as atividades do delegado;
  • dever de reação (nada obstante o presidente do conselho receba a informação de que um colaborador ofereceu dinheiro a um gestor público em troca de exercer a oportunidade de inserir cláusulas favoráveis à empresa em edital de licitação, deverá tomar providências enérgicas e efetivas a sanar o problema, punir o infrator e adotar medidas de prevenção para novo ato não venha a ocorrer).

A distribuição das competências e a adoção das medidas de delegação descritas anteriormente é que determinarão o alcance e repartição das responsabilidades e das funções entre o nível hierárquico mais alto até o mais elementar. Na delegação de competências no plano vertical, o “princípio da desconfiança” exige o dever de vigilância e controle. A “desconfiança” recomenda o constante estado de alerta e diligência.

No plano horizontal de alta hierarquia, todos os administradores estão em posição de garante; vige o “princípio da confiança”.

Nos níveis inferiores da empresa, há o princípio da divisão de trabalho no mesmo nível hierárquico e, portanto, não estão em posição de garante, pois cada um responde pela esfera de sua competência; princípio da estrita competência; princípio da especialização. O fato de um trabalhador ver algum erro de outro funcionário (nesta relação horizontal), não o torna penalmente responsável, pois não é a sua função exercer aquele trabalho e muito menos exercer a vigilância. O conhecimento daquele erro é irrelevante para fins de imputação por omissão.

No caso do plano horizontal dos administradores, a princípio, pode existir o dever de vigilância, uma vez que todos são, no final das contas, garantes. E uma atuação incorreta de um, repercutirá na esfera jurídico-penal do outro. Obviamente, conclusões finais dependeriam dos detalhes desta complexa relação entre os garantes.

Sobre o tema Ricardo Robles Planas [1] exemplificou o caso de uma empresa de investimentos com três sócios, em que só um deles administrava. Este sócio administrador apropriou-se indevidamente de recursos, a descapitalizar a empresa. Quem responde penalmente? Os outros dois simplesmente não exerceram a vigilância, embora tenha existido desde a origem da organização, uma repartição clara de competências: um sócio administrava e os demais, não, pois eram investidores. Os dois sócios deveriam ou não, ser imputados penalmente, uma vez que são garantes e têm dever de vigilância? A autoria e participação depende dos detalhes do caso. Na Espanha, o Tribunal Supremo (Sentença 234/2010, 11/03/2010) proferiu o seguinte julgamento: não houve unanimidade; alguns julgadores entenderam que não havia responsabilidade; outros, de que havia responsabilidade; a maioria entendeu que deveria ser aplicado o princípio da estrita competência; cada sócio estava especializado em uma atividade; houve separação de funções e, portanto, não havia o dever de vigilância. Qual das duas opções estaria correta? Responsabilizam-se os dois sócios ou só o sócio administrador? Se existia divisão de trabalhos entre os garantes é lógico que não existia o dever de vigilância. Se o exemplo for outro, o de uma equipe de quatro cirurgiões escalada para uma operação cardíaca de alta complexidade. Um deles é responsável por uma função e cada um dos outros, por outras. O cirurgião que troca a artéria direita deve concentrar-se no cirurgião que troca a artéria esquerda? À toda vida, parece que não; não deve existir o dever de vigilância. Mas o que ocorre se um cirurgião mostrar sinais de embriaguez e outro cirurgião perceber? Parece razoável que ele avise a equipe. Isto se chama princípio da confiança: não há dever de vigilância e de controle, mas há dever de garante residual que obriga a vigilância quando é conhecido um fato que venha a comprometer a idoneidade e resultado pretendido.

A depender das funções, os ocupantes dos cargos na pessoa jurídica assumem posições de garante. O diretor imediato tem o dever de garante de proteção do trabalhador que está em adaptação[2] . O compliance officer tem o dever de garante de proteção, controle e vigilância para evitar riscos à organização.

Conclusão:
• Princípio da desconfiança – Plano vertical – dever de vigilância é obrigatório.
• Princípio da confiança – Plano horizontal – dever de vigilância só ocorre em situações de inexigibilidade de conduta diversa.
• Princípio da competência; cada um assume sua função; mecanismo da delegação e da especialização.
• A posição de garante desaparece quando um dos pressupostos da delegação é sonegado pela autoridade delegante.

[1] Palestra “Teoria do Delito Econômico – Autoria e Participação”, IASP, Brasil, 10/09/2016.
[2] Sánches, Jesús-María Silva; Varela, Lorena. Responsabilidades individuales em estructuras de empresa, p. 281.

Esse artigo faz parte de um especial – COMPLIANCE e o DIREITO PENAL NAS RELAÇÕES ENTRE EMPRESAS PRIVADAS E O GOVERNO – clique aqui e acompanhe os demais artigos.

Publicado em 14 de maio de 2018

(Colaborou Dr. Ariosto Mila Peixoto, advogado especializado em licitações e contratos administrativos, no escritório AMP Advogados).

*Alguns esclarecimentos foram prestados durante a vigência de determinada legislação e podem tornar-se defasados, em virtude de nova legislação que venha a modificar a anterior, utilizada como fundamento da consulta

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