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STF e dispensa irregular de licitação: incertezas em matéria penal

As licitações caracterizam um dos nós górdios das práticas administrativas brasileiras, merecendo sempre a atenção dos estudiosos do Direito, que constantemente são chamados a empregar seus esforços para o aprimoramento e a racionalização desse instituto.

Entretanto, quem mais sofre com as atribulações decorrentes da aplicação concreta da Lei 8.666/93 são os agentes públicos que são chamados, no exercício de seu múnus funcional, a conduzir os certames, a aprová-los ou a neles se manifestar por diferentes razões. O agente público que se envolve no cipoal normativo dos processos licitatórios está constantemente exposto — considerado aqui sempre o servidor de boa-fé — à responsabilização pelos mais diversos atos.

Esse quadro de constante ameaça que vive o agente público envolvido no processo de licitação — ou de sua dispensa ou inexigibilidade — inspira este estudo, em especial ante recentes decisões da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

Tais decisões dizem com um aspecto muito pontual de uma área pouco explorada da Lei 8.666/93, qual seja, a de seus tipos penais, mais especificamente o tipo do artigo 89, que trata da dispensa ou da inexigibilidade irregularmente operada.

O artigo 89 da Lei de Licitações tem o seguinte teor:

“Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa”.

O primeiro aspecto de relevo no exame do dispositivo em questão diz com o elemento subjetivo do tipo penal. E aqui fica claro que só há o crime do artigo 89 se há, por parte do agente, o dolo de burlar a legislação de licitações.

Como registra a doutrina, o elemento subjetivo do tipo é a vontade livre e consciente do agente de dispensar ou não exigir a licitação, inteirado da ilicitude dessa omissão, tal como ensinam, por exemplo, Paulo José da Costa Junior[1] e Vicente Greco Filho[2], em obras específicas sobre os crimes da Lei 8.666/93.

Ou seja, para que o crime ocorra, não basta não fazer a licitação, mas se deve ter consciência de que o não cumprimento dessa formalidade é uma violação da lei.

Nesse sentido, muitas já foram as denúncias rejeitadas pelo STJ e pelo STF dirigidas contra agentes públicos que deixaram de licitar na forma dos artigos 24 ou 25 da Lei de Licitações, mas o fizeram embasados em parecer jurídico minimamente fundamentado, o qual teria levado o denunciado a acreditar na licitude de sua conduta.

Assim, a suprema corte já reconheceu como indispensável para o recebimento da denúncia pela prática do crime do artigo 89 a demonstração da intenção de burlar o procedimento, como assentado, por exemplo, no julgamento do Inq 2.648, relatora ministra Cármen Lúcia, DJ de 22/8/2008[3].

Nesse precedente, o STF, por unanimidade, entendeu que a denúncia que não demonstra a existência de dolo não reúne os elementos mínimos para desencadear uma ação penal, não cumprindo as exigências do artigo 41 do Código de Processo Penal e não demonstrando a existência de justa causa, na forma do inciso III do artigo 395 do CPP.

Nesse mesmo sentido é a jurisprudência do STJ, da qual é exemplo a AP 214, relator ministro Luiz Fux, DJ de 1º/7/2008, em cuja ementa se afirma que o “tipo previsto no artigo 89 e seu parágrafo único reclama dolo específico, inadmitindo culpa ou dolo eventual, uma vez que tem como destinatário o administrador e adjudicatários desonestos e não aos supostamente inábeis. É que a intenção de ignorar os pressupostos para a contratação direta ou simular a presença dos mesmos são elementos do tipo”.

Esse precedente do ministro Luiz Fux traz à baila outra questão relevante: a de se saber se se está diante da exigência somente de dolo genérico ou se deve ser perquirida a existência de dolo específico.

Em linhas muito gerais, cabe aqui lembrar a diferença existente entre os tipos de dolo genérico ou específico. Segundo a doutrina do Direito Penal, o dolo genérico é verificado nos tipos penais em que a vontade do agente se esgota com a prática da conduta objetivamente criminosa, como no caso do artigo 121 do Código Penal, cuja conduta descrita é “matar alguém”.

No dolo específico são projetados tipos penais que exigem do agente uma finalidade particular, uma intenção especial, que ultrapassa os limites do fato material. O dolo específico serve como um elemento de caracterização específica dos tipos penais, estando presente com frequência em leis penais especiais.

No caso do artigo 89 da Lei de Licitações, o dolo genérico seria dispensar ou inexigir a realização do certame licitatório, sabendo o agente de sua obrigação em realizá-lo. Já o dolo específico seria essa mesma conduta com um elemento transcendente, uma intenção especial que ultrapassa o fato material descrito no tipo, que seria o desígnio de causar prejuízo ao erário.

E além do dolo específico, discutiu-se — e ainda se discute — se esse prejuízo ao erário deve ser necessariamente comprovado para que o crime seja configurado.

Logo no início da vigência da Lei 8.666, considerável parcela da doutrina[4] sustentou que o tipo do artigo 89 da Lei de Licitações prevê um crime de perigo abstrato. Crimes de perigo abstrato são aqueles que não exigem a lesão de um bem jurídico ou a colocação deste bem em risco real e concreto. São tipos penais que descrevem apenas um comportamento, uma conduta, sem apontar um resultado específico como elemento expresso do injusto.

Ou seja, causando dano ou não, há crime. No caso do artigo 89, havendo ou não lesão ao erário decorrente da dispensa ou da inexigibilidade irregular, incorreria o agente público na sanção.

A jurisprudência do STJ, porém, rejeitou de início essa tese do crime de perigo abstrato, de modo que não bastaria que se procedesse à contratação sem as formalidades previstas em lei. Para a caracterização do crime seria necessário o dano aos cofres públicos. O crime não se aperfeiçoaria sem prejuízo ao erário.

Exemplo desse inicial entendimento do Superior Tribunal de Justiça pode ser verificado no julgamento da AP 261, relatora ministra Eliana Calmon, DJ de 5/12/2005, em cuja ementa se lê:

“1. O tipo descrito do art. 89 da Lei de Licitação tem por escopo proteger o patrimônio público e preservar o princípio da moralidade, mas só é punível quando produz resultado danoso.

2. É penalmente irrelevante a conduta formal de alguém que desatente as formalidades da licitação, quando não há consequência patrimonial para o órgão público”.

Nesse mesmo sentido, por exemplo, a AP 375, relator ministro Fernando Gonçalves, DJ de 24/4/2006; e a AP 214, relator ministro Luiz Fux, DJe de 1º/7/2008.

Entretanto, a partir de 2009, julgados da 3ª Seção do STJ sobre esse aspecto começaram a adotar entendimento contrário ao explicitado nesses arestos da Corte Especial, concluindo que o crime do artigo 89 da Lei 8.666/93 é de mera conduta, não se exigindo a demonstração do efetivo prejuízo para sua consumação.

Sedimentou-se na 3ª Seção jurisprudência no sentido de ser desnecessária para a caracterização do crime a comprovação do dano, sendo essa orientação aplicada em inúmeros casos, ainda que não se tivesse uma manifestação da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça nesse mesmo sentido.

Ocorre, porém, que, em setembro de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou o Inq 2.482, relator para o acórdão ministro Luiz Fux, DJe de 17/2/2012[5], no qual se exigiu, para a caracterização do crime em tela, a existência de dano ao patrimônio público, no sentido originalmente assentado pelo STJ.

Nesse julgado, cabe destaque um interessante exame que fez o ministro Dias Toffoli das penas a que estão sujeitos os condenados pelo crime do artigo 89; penas essas que pressupõe, para seu cálculo, a existência de dano, como se pode compreender no seguinte trecho do voto:

“Senhor Presidente, leio o tipo pelo qual está denunciado o acusado:

‘Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.’

Mas vou ao art. 99 da Lei nº 8.666/93, que dispõe:

‘Art. 99. A pena de multa cominada nos arts. 89 a 98 desta Lei consiste no pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente.’

Ou seja, a alegação da defesa de que para a configuração do tipo é necessário que se descreva na denúncia a vantagem obtida é decorrência da própria Lei de Licitações, no seu art. 99, estando ausente da denúncia qualquer alegação a respeito da vantagem que teria sido obtida pelo acusado”.

Igualmente explicitando a comprovação do dano e se baseando no voto do ministro Luiz Fux, o ministro Ricardo Lewandowski votou nos seguintes termos:

“Tal como Sua Excelência [ministro Luiz Fux] afirmou, o crime descrito no artigo 89 da Lei de Licitações não é um crime formal ou de mera conduta, exige o dolo e, ao que me parece, ao que pude entender da documentação que recebi e da leitura que fez o Ministro Toffoli, inclusive de trecho do aditamento da denúncia, imputa-se ao então prefeito, hoje deputado, tão somente a ratificação de um parecer favorável dispensando a licitação, no caso. Portanto, não parece demonstrado o dolo. É claro que não se exige nessa fase a demonstração plena do dolo, mas deve-se iniciar essa prova para o efeito de aceitação da denúncia”.

Poucos dias após a publicação desse acórdão do STF, em 29 de março de 2012, o tema voltou à pauta da Corte Especial do STJ, em sede de ação penal originária, em caso de relatoria da ministra Maria Thereza de Assis Moura, integrante da 3ª Seção, que restou vencida nesse julgamento, juntamente com a ministra Nancy Andrighi.

No julgamento dessa AP 480, relator para o acórdão ministro Cesar Asfor Rocha, DJe de 15/6/2012, o STJ reorientou sua jurisprudência, alinhando-a àquela expressa no STF no julgamento do Inq 2.482, tal como explicitado na ementa do acórdão, no trecho aqui relevante:

“– Os crimes previstos nos artigos 89 da Lei n. 8.666/1993 (dispensa de licitação mediante, no caso concreto, fracionamento da contratação) e 1º , inciso V, do Decreto-lei 201/1967 (pagamento realizado antes da entrega do respectivo serviço pelo particular) exigem, para que sejam tipificados, a presença do dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo. Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal”.

Assim, após essa decisão da Corte Especial, as duas turmas integrantes da 3ª Seção do STJ passaram a exigir, para a caracterização do crime de dispensa irregular de licitação, previsto no artigo 89 da Lei 8.666/93, a comprovação de efetivo dano ao patrimônio público decorrente da contratação direta. Podem ser indicados como exemplos dessa atual jurisprudência do STJ, o RHC 70.752, relator ministro Jorge Mussi, DJe de 24/8/2016 (5ª Turma)[6], e o HC 339.303, relator ministro Nefi Cordeiro, DJe de 23/8/2016 (6ª Turma)[7].

Unificou-se, portanto, a partir de 2012, a jurisprudência do STF e do STJ sobre o tema, conferindo uma interpretação uniforme ao artigo 89 da Lei de Licitações e uma orientação clara aos demais tribunais brasileiros, garantindo segurança jurídica e certeza do direito: o crime do artigo 89 demanda, para sua caracterização, o dolo específico de burlar a legislação de licitação e o efetivo dano ao erário decorrente dessa ação.

Atualmente, porém, inicia-se um movimento de divergência entre as duas turmas do STF em relação à necessidade de caracterização de dano ao patrimônio público. Tal divergência adquire contornos preocupantes ante a Emenda Regimental 49/2014, que transferiu do Plenário para as turmas a competência para o julgamento de inquéritos e ações penais envolvendo uma série de autoridades com foro privilegiado[8].

Ou seja, pela mesma conduta, réus podem ser julgados de forma distinta de acordo com a turma a que for distribuído seu processo, ao que se agrega as consequências nefastas da divergência sobre a função de orientação jurisprudencial que própria dos julgamentos do STF.

A 2ª Turma do STF mantém-se fiel aos precedentes do Plenário, que inclusive ensejaram a alteração do entendimento do STJ: o crime do artigo 89 da Lei de Licitações exige, para sua configuração, a ocorrência de dano ao erário. É o que se verifica, por exemplo, no recente julgamento unânime do Inq 3.731, relator ministro Gilmar Mendes, DJe de 1º/3/2016[9].

A 1ª Turma, entretanto, passou a entender que a caracterização do crime de dispensa ou inexigibilidade irregular de licitação prescinde da ocorrência de dano, como expressamente afirmado no julgamento da AP 971, relator ministro Edson Fachin, DJe de 11/10/2016[10]. Nesse caso, o voto condutor do acórdão ressalta que “não se acolhe a tese segundo a qual, para se configurar o crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/93 é necessário comprovar prejuízo econômico ao erário. Não há essa exigência na redação do art. 89 da Lei 8.666/93 e os entendimentos nesse sentido, com a devida vênia, desconsideram que a Constituição elegeu a licitação como instrumento prévio à contratação pelo Poder Público visando a proteção de interesses que vão além da proteção ao patrimônio público”.

O acórdão dessa ação penal não faz menção aos precedentes do Plenário ou aos diversos julgamentos da 2ª Turma relativos à interpretação do artigo 89, limitando-se a citar julgado em que se discute seu artigo 90, esse sim um tipo que encerra crime formal.

Há, com o decidido na AP 971, uma guinada significativa na jurisprudência do Supremo — ou pelo menos de sua 1ª Turma —, com repercussão em outros feitos, como já se pôde verificar na AP 946, relator ministro Marco Aurélio, julgada em 30/8/2016, com acórdão ainda pendente de publicação[11]. Nesse último feito, o ministro Edson Fachin reafirmou seu entendimento de que o crime em questão é formal, remetendo às razões de seu voto na AP 971.

Diante desse quadro de divergência e de consequente incerteza quanto à correta interpretação do artigo 89 da Lei de Licitações, impõe-se a afetação dessa questão ao Plenário do STF, para que o colegiado volte a unificar seu entendimento, em benefício da segurança jurídica. Por outro lado, diante de situações como a narrada neste texto, evidencia-se a necessidade de uma nova reflexão da corte acerca da transferência, para as turmas, de funções judiciais relevantes tradicionalmente exercidas pelo Plenário.

(Fonte: Conjur)

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